29 de outubro de 2010

Incrivelmente nojento & extremamente podre - Carne que você come

Em artigo exclusivo à Galileu, um dos mais cultuados nomes da nova literatura americana revela detalhes do período em que passou investigando como a carne que comemos é produzida

Por Jonathan Safran Foer 
 
 
“Tente visualizar... (É improvável que algum dia você chegue a ver em pessoa o interior de uma granja.) Pegue um pedaço de papel sulfite e imagine uma ave adulta, com formato semelhante ao de uma bola de futebol americano com patas, de pé sobre a folha de papel. Imagine 33 mil desses retângulos numa grade. Agora coloque a grade dentro de paredes sem janelas e um ventilador no teto. Insira nesse cenário sistemas de alimentação (guarnecida com drogas), água, aquecimento e ventilação. Isso é uma fazenda.

Estudos científicos sugerem que virtualmente todas as galinhas (mais de 95%) tornam-se infectadas com a bactéria E. coli (indicador de contaminação fecal) e entre 39% e 75% das que chegam ao varejo ainda estão contaminadas.”


FEZES NO SEU QUEIJO:

Gado, lama e feno? Também, mas a imagem acima mostra uma fazenda de laticínios, no estado americano de Washington, com vacas afundadas em urina e excrementos
Foi muito difícil parar de comer carne. Para algumas pessoas é fácil, elas tomam a decisão e pronto. Para mim, foram anos de dúvidas atrozes. Um dos meus grandes problemas é que eu simplesmente adoro o gosto da carne. E isso tem a ver com as representações culturais da comida. Os alimentos transmitem amor, valores, histórias. Nossas refeições alimentam e ajudam a lembrar. Comer e o ato de contar histórias são inseparáveis – a água salgada também são lágrimas; o mel não só é doce, mas nos faz pensar na doçura. Por isso, sentar à mesa sempre foi algo muito importante para mim.

Desde que descobri que o frango no meu prato era uma galinha morta, nunca mais aceitei bem o fato de machucar os bichos para comê-los. Mas não conseguia ser muito contundente em relação a isso. Aí aconteceu uma revolução na minha vida: tive um filho. E percebi que podia escolher contar a ele outras histórias sobre os alimentos, diferente das minhas. Porque nutrir meu filho não é como me nutrir: é mais importante. Importa porque comida é importante e porque as histórias que são servidas com ela também são. Decidi, então, ver de onde vinham minhas refeições. E fui buscar a questão que mais me incomodava, os animais.




* Os trechos em itálico fazem parte do livro Eating Animals, novo livro de Jonathan Safran Foer, autor de, entre outros, Extremamente Alto & Incrivelmente Perto. Traduzido por Adriana Lisboa, a obra será publicada no Brasil, pela Editora Rocco, no segundo semestre

 
 CAPÍTULO 1 | A NÁUSEA

A próxima vez que um amigo tiver um ‘resfriado’ repentino, faça algumas perguntas. A doença foi uma dessas que vêm e vão rápido – vomitadas ou defecadas e então aliviadas? O diagnóstico não é simples, mas, se a resposta for sim, seu amigo provavelmente não ‘pegou uma virose’, ele ‘comeu uma virose’ que tem todas as chances de ter sido criada pelas fazendas industriais.”




A coisa mais interessante sobre a pecuária nos EUA hoje é que não há absolutamente nada de bom a ser dito sobre ela. As fazendas industriais são responsáveis pela morte anual de cerca de 450 bilhões de animais terrestres e têm uma contribuição 40% maior para o aquecimento global que todo o transporte do planeta reunido. São a causa número um da mudança climática. Ou seja, de qualquer ângulo, elas são péssimas. Se alguém escolher apenas um desses argumentos para recusar a criação moderna de animais, ele será mais que suficiente.

Além disso, comemos animais doentes. Frangos e perus são criados em espaços minúsculos, sem a mínima condição de locomoção. Porcos nascem deformados e precisam ficar presos para não atacarem uns aos outros. Peixes criados em tanques podem tornar-se canibais. Grande parte do gado é retalhada e desmembrada enquanto ainda está consciente. Nosso sustento vem da miséria. Se alguém nos oferecer um filme sobre como nossa carne é produzida, ele será de terror. 
 CROSTA DE SUJEIRA: Vaca coberta por uma carapaça de dejetos - a cada segundo, os EUA produzem 40 mil quilos de fezes animais




Mesmo assim, o que mais me impressionou durante os quase três anos que passei escrevendo o livro não foi nenhuma das cenas horríveis que presenciei. Foi a constatação de que elas não são as exceções, mas a regra. Nos EUA, 99,9% dos animais são criados em fazendas industriais, onde essas imagens são rotina. Isso foi o mais assustador. Como a maioria das pessoas, eu sabia que esse tipo de criação não era boa. O que não sabia é que todas as vezes que compro algo no supermercado ou que pago a conta do restaurante estou pagando por um animal criado dessa forma. Isso é tão grave que nenhum dos grandes produtores de carne me deixou entrar em suas fazendas.


Entrei em contato com todos e não houve um que me abrisse as portas. Para ver como realmente são os frangos e perus que vão para minha geladeira precisei invadir as propriedades no meio da noite, como um bandido. E a visão daqueles bichos empilhados é, realmente, terrível. Até hoje a grande indústria permanece silenciosa sobre o que escrevi.

Por tudo isso, tornei-me vegetariano e escolhi alimentar meu filho da mesma forma. O vegetarianismo é a única forma de comer coerente com tudo o mais que ensino a ele. Não consigo lhe dizer “olha, filho, sabe aqueles animaizinhos que estão nos livros que lemos pra você à noite? Então, na verdade, a gente mata todos eles, arranca a cabeça, coloca na churrasqueira e depois come, viu?”. Não falo de certo ou errado, mas simplesmente não tem nada a ver com os meus valores.


 CAPÍTULO 2 | DESASTRE GLOBAL

“Então as galinhas vão para um tanque de água refrigerada, onde milhares de aves são resfriadas juntas. A água nesses tanques foi convenientemente nomeada ‘sopa fecal’. Pela imersão de aves limpas e saudáveis no mesmo tanque das sujas, você está assegurando a contaminação.”




Sei que é inviável que todos deixem de comer carne. Essa não é a solução. Também fui a fazendas onde os animais são bem tratados, bem alimentados e abatidos, e não posso ser contra quem come esse tipo de bicho. Mas essas fazendas nunca irão alimentar o mundo. Elas sempre serão exceções, ainda mais em um mundo de quase 7 bilhões de pessoas. Muitos se distraem com questões filosóficas, se é certo ou errado comer animais ou como faríamos uma pecuária ética. Mas isso não é nada prático. Vivemos em um mundo lotado de gente que quer comer muito bife. E não há nenhuma maneira de responder a esse desejo que não seja destruindo o meio ambiente e sendo violento com os animais.

Mas, por outro lado, precisamos desesperadamente encontrar um jeito mais sustentável de produção. E as pessoas precisam comer muito menos. Nos EUA, o consumo de frango aumentou 150 vezes em 80 anos. Essa abundância, combinada com a destruição ambiental, não pode ser ignorada. Mas ainda não encontramos um modelo para solução. O grande problema é que a maioria vê na discussão as alternativas: comer ou não comer carne. E há inúmeras opções entre esses dois polos.


Muitas pessoas se preocupam com a questão do meio ambiente e dos maus-tratos a animais, mas nem cogitam ser vegetarianas. E, veja só, se toda a população dos Estados Unidos decidir não comer carne apenas uma vez por semana, isso seria o equivalente a tirar 5 milhões de carros das ruas. Pequenas ações como essas são, realmente, importantes. Gestos como escolher o que vai para a lista do supermercado ou quais ingredientes pedir do cardápio podem começar a mudar o mundo. Não é necessário tirar os animais da dieta.


 CAPÍTULO 3 | UMA SOPA DE FEZES


“Os animais criados nas fazendas industriais produzem 130 vezes mais excrementos que a população humana – nos EUA, são cerca de 40 mil quilos de merda por segundo.”





Sou absolutamente contra o argumento de que comer carne é da natureza humana. Não acredito que, só porque a humanidade comeu outros animais por longo tempo, deveríamos continuar assim. O progresso só se dá quando transcendemos a natureza. Cada livro escrito é uma forma de transcendê-la, o fato de falarmos pelo telefone ou de não sairmos esmurrando os outros também. E podermos escolher agir de acordo com o que não é natural é algo essencialmente humano. Deixar de comer outros animais nos faz também mais homens.


Afinal, existiram épocas e lugares em que os humanos comeram insetos, bichos de estimação ou outros humanos. Esses limites, geralmente, são arbitrários. Tornei-me vegetariano, mas não acho que seja o único caminho. As pessoas precisam comer de acordo com seus valores. Se fizessem isso, a maioria deixaria de comer carne. E se todos souberem o que realmente está acontecendo, se virem como os animais se tornam comida, quem sabe deixar de comer carne não seja mais apenas uma exceção?





 E MAIS TRÊS VERDADES INCONVENIENTES NO PRATO


1>>> “Sem piadas aqui, e sem desviar do assunto: os animais são sangrados, pelados e desmembrados enquanto estão conscientes. Isso acontece o tempo todo, e a indústria e o governo dos EUA sabem disso. Muitos estabelecimentos intimados por retirar o sangue e o couro e desmembrar animais vivos defenderam suas ações como algo comum na indústria e perguntaram, talvez com razão, por que tinham sido selecionados.”


2>>> “Uma fonte maior de sofrimento para salmão e outros peixes criados em cativeiro é a presença abundante de piolhos-do-mar, que crescem em águas sujas. Esses piolhos criam lesões abertas e às vezes corroem até os ossos da face dos peixes – um fenômeno tão comum que é conhecido como a 'coroa da morte' na indústria. Um único salmão criado em cativeiro gera uma multidão de piolhos-do-mar em quantidades 30 mil vezes superiores ao que ocorreria naturalmente.”


3>>> “Quanto mais cedo os leitões se alimentam de sólidos, mais cedo alcançam o peso de mercado. 'Comida sólida' frequentemente inclui plasma sanguíneo seco, um produto secundário dos abatedouros. (Isso fere a mucosa de seu trato gastrintestinal.) Os porcos desmamados serão, então, forçados para dentro de gaiolas de metal. Essas 'creches' são empilhadas, e fezes e urina caem das gaiolas superiores nos animais de baixo. Os criadores vão deixar os leitões ali antes de movê-los para seu destino: cercados apertados. Sem espaço para se mover, os bichos queimam poucas calorias e engordam mais com menos comida.”







 VERSÃO BRASILEIRA 

A Galileu procurou criadores e especialistas para desvendar como a carne é produzida no Brasil. Dois dos maiores produtores de carne, Sadia e Perdigão, não permitiram a visita da reportagem aos abatedouros "por questões sanitárias". Para Luiz Carlos Faria, gerente da Avicultura Aurora, "há um rígido controle da Vigilância Sanitária, e não existe mais essa história de cortar o bico ou outros segredos". Confira em galileu.globo.com a opinião de sociedades protetoras dos animais. 

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